9.12.2012

Os pontos negros



















É um pouco rebuscado dizer que Querido Diário/ Caro Diario (1993) é atravessado por três tipos distintos de pontos negros, que funcionam como o núcleo de cada segmento autónomo do filme, mas é apenas a interpretação que arrisco, sem risco de Moretti vir fazer-me a mim o que o vemos fazer a um crítico de cinema que havia escrito babugem diversa sobre diversos filmes.
Os pontos negros presentes em Querido Diário são o próprio Moretti, que na primeira parte, Na Vespa, ziguezagueia, próximo ou à distância, sempre de t-shirt preta, pelas ruas de Roma como se fosse a coreografia possível de quem não sabe dançar. No segundo episódio, Ilhas, a televisão é o ponto negro, estando ligada ou desligada, o que vem a ser explicado depois reportando a um dos mais brilhantes diálogos do filme, entre Moretti e o amigo que o acompanha num périplo pelas ilhas em busca de sossego para trabalharem: (“Sabes o que escreveu Hans Magnus Enzensberger?”, “Ehhhh…”, “Estou de acordo com ele.”). Enzensberger terá dito que a televisão é o nada, no sentido em que o que nela se vê é nada, no entanto, concluo eu agora, atrai-nos como o faz ao amigo de Moretti como se se tratasse de um abismo negro. No derradeiro segmento, Médicos, o ponto negro é bastante mais óbvio. É o tumor linfático que aparece a Moretti e o faz percorrer um conjunto de dermatologistas e alergologistas, ingerir dezenas de medicamentos, testar todo o tipo de terapias, até que se acerte no diagnóstico. Um tumor felizmente benigno ou não haveria Moretti depois de Querido Diário.
A originalidade do filme tem a ver ainda com o facto de baralhar os géneros cinematográficos em cada uma das partes, e o modo como o faz. Na Vespa não é inteiramente um musical, embora a música esteja sempre presente e seja muitas vezes o único elemento sonoro. Ilhas não é apenas e só uma comédia, e atrevo-me a dizer não inteiramente ficcional, pois sugere que Querido Diário seja produto de um impasse criativo que se tornou num impulso criativo. Médicos, a terceira parte, é a que mais directamente se refere à vida do realizador. É Moretti quem o afirma, lendo a partir do diário que escreve ao longo de todo o filme. Há mesmo imagens de uma sessão de quimioterapia que são documentário puro e duro. Claro que as idas a médicos e tudo o mais é reconstituição. Reconstituição que termina com a mais transparente das sabedorias. Beber um copo de água ao acordar faz bem. De resto podemos apenas apreciar a vida.

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