9.24.2012
As faces do caimão
Podemos dizer de O Caimão (2006), por dificuldade em classificá-lo, que se trata de uma comédia sofisticada. A sua arte é a de fugir ao propósito claro e a um registo cómodo para o modo de o encararmos. Quando assim é devemos procurar agarrá-lo pelo todo, evitar que nos ludibrie com a mistura de partes, e passar ao título, O Caimão. Não importa o que seja um caimão, mas o que o nome sugere. Um réptil de grande porte, como um dragão, que muda de aspecto de acordo com a sua conveniência, como um camaleão.
Camaleónica longa-metragem de Nanni Moretti, portanto, que enxuga a baba viscosa do caimão com material finíssimo, embora não ostensivo nas qualidades: camurça talvez. Como abordar uma personagem omnipresente da vida italiana contemporânea, que governou sob vários poderes? Mostrar somente a Itália tal como Sílvio Berlusconi a via e a fez transformar-se implicava um empobrecimento humano que o cinema de Nanni Moretti não podia suportar. Daí o registo camaleónico de O Caimão, para fazer coabitar realismo, hiper-realidade e fantasia.
A pequena história que é grande, a do produtor Bruno Bonomo (homem bom), suas vicissitudes em movimento escapista continuado; e a grande história que é miserável, retrato da governação populista levada a um extremo de reality-show. O combate que Moretti leva a cabo em O Caimão, luta pelo triunfo da imaginação desbragada e dos sentimentos individuais inseridos numa sociedade de mau espectáculo. Moretti secundariza Berlusconi para dar a ver como o delírio inocente é inofensivo para todos excepto o próprio (Bonomo), que despertará a tempo de recuperar o melhor de si mesmo. Já Berlusconi, ídolo plástico das massas, provocou estragos seríssimos de que a Itália se ressente ainda.
Moretti nutre uma fixação por barcos, colocando-os em relação de escala com os humanos. Está em vários filmes seus. Um dos mais belos momentos de O Caimão, naquele registo ambíguo mas muito sedutor, algures acima de um plano realista e dentro deste ao mesmo tempo, mostra uma caravela a ser transportada pelas ruas de Roma que irá servir na rodagem de um filme sobre a descoberta da América por Colombo. A manifestação do maravilhoso, do inesperado, do poético, no contexto pungente da história de Bruno Bonomo (acossado por divórcio, falência, bloqueio profissional) é a crítica mais incisiva que pode fazer-se a quem queria adormecer todo um país com uma fabricação pirosa e primária.
O Caimão sai vencedor não tanto pela denúncia mas pela afirmação da possibilidade da diferença. É sempre possível significar o carácter excepcional da vida humana, e cada vez mais raro de ver qualquer coisa que se apreende em contínua transformação. A vida reinventada para ser sobrevivida.
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