10.13.2011

Exangue


















Viagem ao fim da noite

O filme chama-se 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias e nele assistimos ao braço de ferro intenso entre uma actriz extraordinária (Anamaria Marinca) que luta a cada plano pela dignidade da personagem – que acompanha até ao lado mais escuro da noite (para se desfazer do feto abortado por outra mulher) –, e um realizador, o romeno Cristian Mungiu, demasiado consciente das habilidades de grande manipulador, que vai urdindo o seu dispositivo de crueldade. Se quisesse sintetizar a minha opinião sobre 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias numa fórmula algo maniqueísta, diria que gostei da actriz ao contrário do filme. As minhas reservas passam pela ética que só as imagens importantes acarretam (os filmes nulos ou desinteressantes suscitam sobretudo a nossa indiferença), e neste caso aconteceu a dado instante recordar uma cena de outro filme igualmente perturbador – refiro-me a Bad Lieutenant, de Abel Ferrara – e do momento em que o polícia interpretado por Harvey Keitel se masturba para as duas raparigas dentro do carro. O paralelismo que me ocorreu entre o filme de Ferrara e este de Cristian Mungiu remete para a situação de coacção psicológica exercida por Mr. Bebe (o diabólico abortador) sobre outras duas jovens em anónimo quarto de hotel, que levará a que uma delas lhe prostitua o corpo como parte do pagamento pelo aborto clandestino. Se a cena de Ferrara me excita e a de Mungiu me repugna talvez seja porque o primeiro exemplo se insere numa lógica de simbolismo excessivo identificadora da prática artística que é o cinema, e o segundo caso faça parte de uma trama onde o banal e o sub-reptício se insinuam tal como na vida. Claro que o âmbito do filme romeno não se circunscreve àquela fatalidade, e exceptuando uma ou outra habilidade escusada do seu realizador (o plano do feto, a duração deste; a menção das várias carnes servidas na triste ceia que encerra o filme), oferece contundente retrato da escassez material e da mesquinhez da existência humana sob a ditadura comunista de Nicolae Ceaucescu (1965-1989). Afinal de contas, a mais profunda de todas as noites. 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias foi o grande vencedor da edição 2007 do Festival de Cannes.



Se recupero o texto sobre o filme romeno escrito para a revista Atlântico (que não existe mais) é porque dele me lembrei muitas vezes ao longo dos 190 minutos de Sangue do Meu Sangue, e porque as minhas reservas se mantêm de um filme para o outro. Sangue do Meu Sangue é objectivamente um grande filme, o melhor de Canijo e a exploração máxima do seu método de fazer cinema. Mas é também um objecto que nos deixa vazios por dentro ao sair da sala. Uma práxis de produzir sordícia, uma visão do mundo que tenho de rejeitar por se encontrar demasiado próximo da vida para que eu a veja apenas enquanto arte.

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