8.18.2008

Ponto de retorno















SHAFT 2000: LAVA MAIS BRANCO!

No início da década de 70, que viu surgir o conceito «blaxploitation» aplicado ao cinema – filmes com mais sexo e mais violência dirigidos ao público afro-americano, em particular –, o livro “Shaft”, de Ernest Tidyman, foi pela primeira vez adaptado ao grande ecrã, com realização a cargo de Gordon Parks, protagonismo carismático de Richard Roundtree e música inebriante de Isaac Hayes.

Nesta actualização do universo Tidyman, resolveram, e bem, mexer na música... com pinças – David Arnold varia mas não estraga; resolveram, já considero questionável, manter Roundtree no elenco – agora na qualidade de tio semi-aposentado do novo Shaft (Samuel L. Jackson); e ainda resolveram, e mal, fermentar a narrativa com uma série de estereótipos étnicos apenas desculpáveis num universo com a estilização personalizada de um Brian De Palma – recordando esse excelente filme que é “Carlito’s Way".

John Singleton é um óbvio caso do realizador de um só filme interessante – “A Malta do Bairro” / “Boyz N the Hood”, de 1991 –, cuja fama vai sobrevivendo à custa da publicidade e dos videoclips. É por certo um indivíduo bem relacionado no meio VIP afro-americano, mas, se atentarmos apenas ao talento, e se o compararmos com o de outro cineasta negro como Spike Lee, Singleton reduzir-se-á inapelavelmente à sua insignificância. São ambos afilhados de Scorsese (Richard Price até dá uma mãozinha ao argumento de “Shaft”: pergunto eu, onde?), mas só um soube criar o seu próprio universo.

O estilo de Singleton é poucas vezes fascinante e frequentemente vazio: Quando vemos a sombra do casaco Armani, de Samuel L. Jackson (Shaft), a varrer o alcatrão nova-iorquino, a coisa impressiona, é super-cool. Digna de um fazedor de imagens com a eficácia e o imediatismo publicitários. Mas “Shaft” vai perdendo o interesse porque nunca descortinamos uma hierarquia nas diferentes histórias. A montagem torna-se aleatória e vão-se buscar personagens aos quais fomos perdendo o paradeiro: O sociopata de Christian Bale é o exemplo mais evidente desta limitação.

O “Shaft” original, que é um exemplo sóbrio do cinema «blaxploitation» – talvez por isso esteja menos datado que os seus congéneres –, perde-se nesta versão num numeroso «bodycount» e, sobretudo, num nítido branqueamento da sua componente sexista. Hoje só temos direito à nudez altamente velada do genérico – tipo 007; nunca vendo Shaft na cama com a(s) sua(s) «dama(s)». Em conversa marota o herói ainda pergunta a uma antiga amante se ela quer ser abraçada («held»), ou se quer o L. D. («dispensa tradução»). Não há direito: Queremos ver Shaft a dar prazer a uma mulher como só um «soul brother» sabe dar. Right on, Mr. Hayes!

R.G.



Este texto foi escrito no ano de 2000: fui buscá-lo precisamente ao Cinema2000, espaço à data por mim muito frequentado. Nesse tempo fingia que alguma vez sentira o que era dar prazer a uma mulher (por favor, não façam contas). Como se vê, isso em nada afecta a capacidade de se escrever sobre filmes. Hoje dificilmente conseguiria fazer melhor que isto. É como se a vida avançasse em círculos, know what I mean? Meditem vocês nisto, se quiserem, que eu voltarei dentro de dias.

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