9.21.2006
Empate poético
Ainda a propósito da antestreia, ontem, de Rapace e de Cântico das Criaturas, poderia aqui escrever que se tratou de uma sessão revolucionária naquilo que entenderíamos ser o potencial da nossa cinematografia. Como, no geral, tendo a duvidar das revoluções, digo apenas que se tratou do melhor programa de curtas-metragens a que alguma vez assisti. Rapace e Cântico das Criaturas, objectos que não foram criados com a intenção de se complementarem entre si, pareceram-me afinal duas faces da mesma aproximação à língua portuguesa. Enquanto que João Nicolau filma o corpo das palavras, o som que estas produzem, o concreto da rima, a musicalidade que vem agarrada às frases; Miguel Gomes filma-lhes o espírito, o poder alegórico, o efeito de abstracção que as faz quase transparentes de tão puras. Imaginem O Bobo, de José Álvaro Morais, referência que vem sempre a par dos maiores entusiasmos, e cuja influência estas duas curtas não podem recusar. No que se refere ao texto homónimo de Herculano, a metade espiritual, no sentido em que a língua se projecta num tempo infinito, coube agora semelhante tarefa a Miguel Gomes, que parte de O Cântico do Irmão Sol, de São Francisco de Assis, para em termos de estilo ir de um Jonas Mekas transalpino a um Manoel de Oliveira dos idos de Benilde numa simples transição de sequências. Já da parte que corresponde ao tempo presente em O Bobo, o Portugal do pós-25 de Abril, faz agora João Nicolau, uma vez definitivamente entrados do novo século, uma crónica letárgica e espirituosa (irreverências do reverencial César Monteiro pairam por aqui) que, qual ave de rapina, nos crava um sorriso nas maçãs do rosto que não nos larga mais. Ambos os filmes militam por um cinema-poesia que escancara o artifício com brio. São filmes que mostram fé num cinema liberto de quaisquer constrangimentos. E que nos deixam entregues quer a uma branda euforia, no caso de Rapace, quer a uma inexplicável comoção, no caso de Cântico das Criaturas. Se isto não é revolucionário, que posso dizer eu que isto seja?
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