1.17.2011
Memória suspensa
Uma mulher caminha no palco em direcção a nós. Traz um saco de plástico cujo conteúdo espalha no chão. Artigos de higiene, alguns especificamente femininos. Começa a tirar a roupa. Primeiro saltam as sandálias Birkenstock, depois a camisola (não traz soutien, o peito é discreto e firme), depois as calças e por último as cuecas. Está nua e olha-nos de frente. Tem um corpo jovem, pequeno e elegante. Noto o alinhamento dos pêlos púbicos, a perfeita simetria da sua inclinação para o centro, ou o modo como do centro se curvam para a periferia. O cabelo da mulher mostra um corte assimétrico à maneira do País Basco. Cláudia Dias tem 38 anos, é criadora e intérprete do espectáculo Visita Guiada.
Os objectos despejados do saco para o chão são pacientemente colados ao corpo com fita cola. Uma vez concluída a operação, Cláudia Dias mais parece uma blade runner da loja dos trezentos. A sua deslocação no palco é tão pausada quanto o seu discurso. Mas antes de se nos dirigir por palavras irá desenrolar toda uma embalagem de fio dental pelo palco. Imenso fio que anuncia as histórias que iremos ouvir. Depois, enquanto constrói as duas margens de Lisboa mais a ponte que as liga, recorrendo a cigarros, pensos higiénicos, batom, pasta dentífrica, etc, vai contando histórias da sua vida, da família e dos amigos. A voz não sofre a mínima oscilação emocional. Dir-se-ia uma voz neutra. E uma carne também neutra, que apesar de exposta nada investe de sensualidade. As memórias são verbalizadas de forma serena: seja o episódio da perda da virgindade numa pensão da Costa da Caparica; a recordação do namorado que tanto gostava de a ver chegar a Lisboa de barco; ou já perto do fim a aventura da amiga que apanhou boleia para Barcelona com um camionista por quem se deixaria violar temendo mais violentas represálias.
Há ironia no discurso de Cláudia, mas não chega a ser amarga. A própria construção harmoniosa de Visita Guiada parece indicar que as memórias são revisitadas com sentido de pacificação. O fio espalhado no chão será recuperado em forma de colar, e Cláudia Dias sairá de cena na quase penumbra e numa quase dança. Teriam passado os 55 minutos que a folha do espectáculo refere, mesmo que a impressão deixada tenha sido a de um tempo suspenso.
Arquivo do blogue
-
▼
2011
(665)
-
▼
janeiro
(46)
- Todos por Liedson
- O filme mais triste num ano
- A dama do mar
- Fóssil
- Copy/Paste (do Público)
- E.T. meets The X-Files meets Starman meets WHO CARES
- Comandante da Legião de Honra
- Dark stranger
- A love song
- A árvore da vida
- Talismã
- Camané
- ISIS primeiro capítulo
- M. para sempre
- Meia manga
- Êxtases nórdicos
- Mai'nada
- Relação entre iguais
- Maridos e mulheres
- 49% MOTHERFUCKER, 51% SON OF A BITCH
- Bico calado
- Dar que pensar é uma virtude
- Quem tem medo de Rob Halford?
- A minha "carta" na LOUD!
- Auto-retrato
- Memória suspensa
- Presidenciais
- Torre do palácio
- Canal caveira
- Encontrei "a" revista
- O que vale um abraço
- Georgia blows my mind
- O presépio cazaque
- Kings Of Leon
- Tiah e o desejo
- Doom-Mantia
- Contabilidade e prestidigitação
- The pillow book
- Choque frontal
- Corvocificado
- Mick Karn 1958-2011
- O sabor da melancia
- Deus está inocente (é apenas uma ficção)
- Ou isto ou nada
- O FMI vem aí
- Mad years
-
▼
janeiro
(46)