9.14.2010

O lugar do réu

Audition (1999) é ainda hoje provavelmente o filme mais visto do japonês Takashi Miike. Dura cerca de 110 minutos e nos primeiros 80' é um drama convencional, mas muito bem filmado, sobre um viúvo de 50 anos que pensa casar de novo (até porque o único filho está a entrar na idade adulta e um dia sairá de casa) e que pede ajuda a um amigo que trabalha no cinema para organizar uma sessão de casting para um filme que nunca se irá concretizar e onde Aoyama, o viúvo, deseja encontrar a dama dos seus sonhos de homem solitário. Isto são, repito, os primeiros dois terços de Audition, que se concluem quando Aoyama finalmente se deita com Asami, a delicada moça escolhida e depois por ele cortejada. A partir deste momento o filme de Takashi Miike entra numa espécie de universo lógico paralelo que até então tinha sido muito lateralmente sugerido. O que parecia idílico torna-se um pesadelo e de seguida entramos no processo de tortura do protagonista que os mais sensíveis poderão achar insustentável (mais até no ecrã grande da sala de cinema).



Vamos por partes. Takashi Miike é um indivíduo que filma ao ritmo de vários projectos ao ano (chegou aos 4 e 5 em 12 meses). Considerêmo-lo um instintivo: é preciso ser rápido para se filmar tanto. O grande instinto de Audition foi o de transferir o lugar de protagonista para o espectador (masculino). Uma versão paroxística de um dos aspectos mais relevantes da obra hitchcockiana. A violência que sofremos indirectamente nos instantes finais, aliada às imagens arquetípicas dos homens que supostamente abusaram de Asami (quando criança e jovem mulher) e por ela foram punidos, parece ambicionar castigar até o mais inocente dos espectadores, que algures no fundo de si esconde o seu grão de culpa. Audition é um filme que pela pulsão abstracta pune indescriminadamente e é por isso um objecto de estranha poesia. Não há lugar a julgamento, não há direito a explicação. A culpa é a condição do adulto e o desejo o seu maior crime. Quem quer que se sente na cadeira terá de se sujeitar a uma outra "audição".

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