5.05.2008

Crónica

MEDO DO TEMPO

"Tudo interessa, mas nada importa"
Romy Schneider em "A Morte em Directo"

A MORTE tornou-se um espectáculo interessante porque é lenta e assustadora. Assustadora pela demora e porque, depois dela, não existe mais nada. Não existe, pelo menos, mais nada que se veja. Acaba-se o tempo, esse terrível tesouro.

Não temos tempo para ler. Não temos tempo para consolar os inconsoláveis. Não temos tempo para conversar. Não temos tempo para amar. Temos demasiados interesses, demasiado trabalho, demasiadas reuniões, demasiados compromissos. Ou então compras para fazer. Substituímos o tempo pelos centros comerciais. Trocamo-lo por bugigangas, moedas, coisas que brilham. Enchemos o tempo para não nos olharmos no seu espelho. De repente, quando, por um minuto ou dois, paramos, não gostamos da imagem que essa paragem nos devolve - a imagem do que não soubemos ser, da vida que perdemos no meio das mil coisas que fizemos. Não há cirurgia estética que nos arranque de cima as pregas do tempo que gastámos em vez de vivermos. Uma das qualidades que eu mais amava em José Cardoso Pires era essa de preferir a boémia ao dinheiro, o tempo gratuito ao tempo comprado, as pessoas aos papéis. Mesmo que depois enfiasse as pessoas, o pior e o melhor delas, nos seus livros, e que às vezes se autoflagelasse por não ser capaz de se "disciplinar", isto é, prescindir do gozo da vida para escrever mais livros. Escreveu os livros necessários - todos os seus livros são necessários, como o sol, a chuva, o esplendor na relva e o riso. O Zé Cardoso Pires sabia rir e fazer rir, porque sabia gostar a sério e detestar a sério. Sabia do tempo - por isso os seus livros (a jóia póstuma que é "Lavagante" é disso exemplo) são eternos. Sempre que os pássaros voltam a chilrear e Lisboa se enche de sol lembro-me do Zé. Sempre que me deparo com o espectáculo da insensibilidade humana lembro-me do Zé - do que ele diria, de como desfibraria as mais desalmadas almas até lhes encontrar um sentido, uma espécie de obscura graça.

Que diria o Zé Cardoso Pires deste artista alemão que anda à procura de um doente terminal disponível para acabar os seus dias em exposição numa galeria? Não lhe repetiria o nome (nem eu o repito) para não lhe dar a fama que o homem procura. E gargalharia do alegado propósito do "artista" (com aspas, pois), a saber: tornar a morte uma coisa mais amena. Um dos mitos publicitários do nosso tempo é o de que as pessoas perderam a boa relação que tinham com a morte. Quando é que essa boa relação existiu? Só naquelas seitas de doidos, muito em voga nos anos 60 e 70, que defendiam o suicídio colectivo. Morre-se hoje mais devagar, isso sim - e a lentidão incomoda, porque nos obriga a pensar e a sentir, em vez de borboletearmos sobre o mundo fascinante das coisas visíveis. "A arte mente porque é social", escreveu Fernando Pessoa, que sabia exactamente que o seu assunto não era a arte, mas o inacessível enigma da vida, e por isso se resguardou para viver a mais radical das solidões humanas, sentindo tudo de todas as maneiras e legando-nos o segredo absoluto do ser.

A vontade desesperada de fazer da vida uma forma de arte original e espectacular fez com que a italiana Giuseppinna, de 38 anos, que dava pelo nome artístico de Pippa Bacca e era sobrinha do artista conceptual Piero Manzoni, se lançasse pelo mundo, à boleia, vestida de noiva, para depois colar as fotografias desse "projecto" intitulado "Brides on Tour" (Noivas em Viagem), numa galeria. A ideia era viajar assim de Milão a Jerusalém, "através dos países tocados pela guerra" - mas, mal chegou a Istambul, finou-se-lhe o projecto e a vida: foi violada e estrangulada. Ficou a irmã, para dar a explicação póstuma, numa frase que José Cardoso Pires não hesitaria em meter num dos seus romances: "O traje era uma metáfora do encontro com o outro, a união e a busca da parte feminina positiva, da mulher como fonte da vida, estabilidade e sensatez." Este tipo de frases normalmente acaba em tragédia.

Nada disto é novo: em 1980, Bertrand Tavernier realizou um excelente filme intitulado "A Morte em Directo", sobre um homem (Harvey Keitel) contratado por um produtor de televisão sem escrúpulos (Harry Dean Stanton) para filmar, através de uma câmara implantada no seu cérebro, a morte de uma doente terminal (Romy Schneider, que aliás morreria mesmo pouco depois), sem o conhecimento dela, para depois passar essa morte num programa de grande audiência. Nem sequer é nova a ideia de que tudo o que se enfie numa galeria de arte se transforma automaticamente em "arte" - ou seja, em valor comercial. Quanto à morte em si, é a coisa mais velha do mundo: sempre se fez dinheiro com ela (ou o que quer que existisse de valor antes do dinheiro) e nunca foi bonita de se ver. A diferença é que agora duramos mais, e isso torna-nos arrogantes e tristes, porque nos faz adiar a vida.

Inês Pedrosa
in Expresso, 3 de Maio de 2008

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