Passaram-se quatro anos desde que escutei pela primeira vez o disco inaugural da editora de David Sylvian, a Samadhi Sound. Desde essa altura, e com a delicadeza mais discreta do mundo, nunca me tinha aventurado por grandes elucubrações em torno de Blemish - reconhecia-lhe méritos (a voz sempre era afinal "a" voz de Sylvian; a espectralidade da electrónica de Fennesz recebo-"a" sempre numa espécie de contido êxtase), mas o corte com a discografia anterior era por demais radical. Veio depois o CD de remisturas, The Good Son Vs The Only Daughter, feito de competentíssimas molduras sonoras mais texturadas e os "lamentos" de Blemish adquiriram maior familiaridade. A incapacidade era minha, agora confesso. Não sei se condicionado pelo facto de ter lido recentemente que Blemish fora gravado por alturas da separação de David Sylvian e Ingrid Chavez, o CD mostrou-se finalmente com tal incandescência que o escutei vezes repetidas num estado de comoção atordoada. A música iluminou-se, iluminaram-se as letras e experimentei a incredulidade (mas também a euforia) do acesso ao coração desta obra ao mesmo tempo meditabunda e visceral. É como se David Sylvian, cujo capital de sedução estende-se da voz quente e xamânica aos arranjos de um exotismo topo-de-gama que pontuam grande parte dos seus discos do passado e da actualidade (a dos Nine Horses), resolvesse com Blemish despir a sua vivência - camada após camada - e apresentar uma confissão nua até ao osso, descarnada embora púdica. Blemish é o olhar mais fundo de Sylvian sobre ele próprio. Depois de um percurso à volta do mundo; de uma aprendizagem junto de várias culturas e diferentes religiões; depois do conhecimento do amor e da harmonia trazia por uma vida familiar estável e por uma cada vez maior autonomia artística, foi a vez da queda e do confronto com as dúvidas mais angustiantes, que são as que vêm daquilo que dávamos por garantido - e para sempre. Em Blemish (de marca, de mancha) faz Sylvian a catarse da mais irresolúvel das perplexidades: escutarmos da boca de alguém que nos amou o desejo de que saiamos da sua vida "no dia seguinte". Pode até nem ser o mais belo disco de Sylvian (e existe beleza naquela crueza, naquela escuridão), mas Blemish é até à data o seu testemunho mais essencial.
Moving Pictures (1993), de Holger Czukay, estrutura-se numa experimentação sonora impressionista que todo este tempo depois se escuta ainda com gosto enorme. A razão tem a ver com a sugestão de ambientes, que se esfumam no minuto seguinte, levada a cabo pelo ex-Can Czukay imbuído de propósitos exploratórios semelhantes aos que certo e histórico dia juntaram David Byrne e Brian Eno para o desenho definitivo dos contornos da música desse utópico "4º Mundo", em My Life in the Bush of Ghosts. O projecto de Czukay neste Moving Pictures é menos ambicioso e deixa perceber um sentido de humor musical que a capa do CD traz bem escarrapachado. Moving Pictures é uma irresistível sequência de ilusionismo sonoro que desafia à identificação dos ambientes que cria, antes de os devolver de novo à sua original abstracção.
O segundo álbum dos Czars, The Ugly People Vs. The Beautiful People (2001), é por outro lado um caso sério. Nunca por cá foi dada grande relevância (nem grande nem pequena) à discografia destes norte-americanos, cuja sonoridade se mantém num território indecidido entre a dream pop e o country alternativo. Os Czars gravavam até há pouco anos para a editora Bella Union dos ex-Cocteau Twins Robin Guthrie e Simon Raymonde (co-produtor dos seus discos). São autores de canções de evidente sofisticação harmónica, os arranjos abrindo-se para cornucópias sonoras próximas da concepção do pós-rock progressivo como é entendida pelos Grandaddy (simultaneamente cósmico e tenso), e as letras - que não destoam da natureza intrinsecamente rétro da banda - tratam de amor e ressentimento, passe o pleonasmo. É provável que as primeiras audições sejam insuficientes para chegarmos a definir uma opinião sobre The Ugly People Vs. The Beautiful People. Há um lado Moody Blues no som dos Czars - e na voz impecavelmente colocada do seu líder, John Grant - que obriga a sucessivos avanços e recuos face ao poder de fascínio que o disco revela possuir. Façamos pois o teste de o escutar o número de vezes neecssárias até o esgotarmos ou até sermos por ele definitivamente conquistados.
Também neste final de semana:
Dos Mogwai, Young Team (INTERESSANTE). De William Basinski, The Disintegrations Loops IV (MONUMENTAL).